As Três Componentes do Ensino de Matemática.
Introdução
Quando se pensa em ensinar Matemática, dois aspectos que se complementam precisam ser considerados separadamente. Poderíamos chamá-los o global e o local, o genérico e o específico, o macro e o micro, a estratégia e a tática, o planejamento e a execução, a estrutura do curso e a didática das aulas.
De didática não trataremos aqui. Em vez disso, diremos como o ensino da Matemática deve ser organizado, levando em conta a natureza peculiar dessa matéria, os alunos aos quais ela se destina e os motivos de sua inclusão no currículo.
A fim de familiarizar gradativamente os alunos com o método matemático, dotá-los de habilidades para lidar desembaraçadamente com os mecanismos do cálculo e dar-lhes condições para mais tarde saberem utilizar seus conhecimentos em situações da vida real, o ensino da Matemática deve abranger três componentes fundamentais, que chamaremos de Conceituação, Manipulação e Aplicações.
Da dosagem adequada de cada um desses três componentes depende o equilíbrio do processo de aprendizagem, o interesse dos alunos e a capacidade que terão para empregar, futuramente, não apenas as técnicas aprendidas nas aulas, mas sobretudo o discernimento, a clareza das idéias, o hábito de pensar e agir ordenadamente, virtudes que são desenvolvidas quando o ensino respeita o balanceamento dos três componentes básicos. Eles devem ser pensados como um tripé de sustentação: os três são suficientes para assegurar a harmonia do curso e cada um deles é necessário para o seu bom êxito.
Conceituação
A conceituação compreende a formulação correta e objetiva das definições matemáticas, o enunciado preciso das proposições, a prática do raciocínio dedutivo, a nítida conscientização de que conclusões sempre são provenientes de hipóteses que se admitem, a distinção entre uma afirmação e sua recíproca, o estabelecimento de conexões entre conceitos diversos, bem como a interpretação e a reformulação de idéias e fatos sob diferentes formas e termos. É importante ter em mente e destacar que a conceituação é indispensável para o bom resultado das aplicações.
Manipulação
A manipulação, de caráter principalmente (mas não exclusivamente) algébrico, está para o ensino e o aprendizado da Matemática, assim como a prática dos exercícios e escalas musicais está para a música (ou mesmo como o repetido treinamento dos chamados “fundamentos” está para certos esportes, como o tênis e o voleibol). A habilidade e a destreza no manuseio de equações, fórmulas e construções geométricas elementares, o desenvolvimento de atitudes mentais automáticas, verdadeiros reflexos condicionados, permitem ao usuário da Matemática concentrar sua atenção consciente nos pontos realmente cruciais, poupando-o da perda de tempo e energia com detalhes secundários.
Aplicações
As aplicações são empregos das noções e teorias da Matemática para obter resultados, conclusões e previsões em situações que vão desde problemas triviais do dia-a-dia a questões mais sutis que surgem noutras áreas, quer científicas, quer tecnológicas, quer mesmo sociais. As aplicações constituem a principal razão pela qual o ensino da Matemática é tão difundido e necessário, desde os primórdios da civilização até os dias de hoje e certamente cada vez mais no futuro. Como as entendemos, as aplicações do conhecimento matemático incluem a resolução de problemas, essa arte intrigante que, por meio de desafios, desenvolve a criatividade, nutre a auto-estima, estimula a imaginação e recompensa o esforço de aprender.
Matemática Moderna (excesso de conceituação)
Durante o período da chamada Matemática Moderna (décadas de 60 e 70), ocorreu no ensino uma forte predominância da conceituação em detrimento dos outros dois componentes. Quase não havia lugar para as manipulações e muito menos para as aplicações. Por um lado, a Matemática que então se estudava nas escolas era pouco mais do que um vago e inútil exercício de generalidades, incapaz de suprir as necessidades das demais disciplinas científicas e mesmo do uso prático no dia-a-dia. Por outro lado, como os professores e autores de livros didáticos não alcançavam a razão de ser e o emprego posterior das noções abstratas que tinham de expor, o ensino perdia muito em objetividade, insistindo em detalhes irrelevantes e deixando de destacar o essencial.
O conceito de função
Um exemplo flagrante da falta de objetividade (que persiste até hoje em quase todos os livros didáticos brasileiros) é a definição de função como um conjunto de pares ordenados. Função é um dos conceitos fundamentais da Matemática (o outro é conjunto). Os usuários da Matemática e os próprios matemáticos costumam pensar numa função de modo dinâmico, em contraste com essa concepção estática. Uma transformação geométrica é uma função. Mas não é provável que exista alguém que imagine uma rotação, por exemplo, como um conjunto de pares ordenados. Os próprios autores e professores que apresentam essa definição não a adotam depois, quando tratam de funções específicas como as logarítmicas, trigonométricas, etc. Quem pensa num polinômio como num subconjunto de IR2 ?
Para um matemático, ou um usuário da Matemática, uma função f: X Y, cujo domínio é o conjunto X e cujo contra-domínio é o conjunto Y, é uma correspondência (isto é, uma regra, um critério, um algoritmo ou uma série de instruções) que estabelece, sem exceções nem ambigüidade, para cada elemento x em X, sua imagem f(x) em Y. Um purista pode objetar que correspondência, regra, etc. são termos sem significado matemático. A mesma objeção, entretanto, cabe na definição de função como conjunto de pares ordenados, pois, para termos um conjunto, necessitamos de uma regra, um critério, uma série de instruções que nos digam se um dado elemento pertence ou não ao conjunto.
Além do mais, a definição de função como uma correspondência é muito mais simples, mais intuitiva e mais acessível ao entendimento do que a outra, que usa uma série de conceitos preliminares, como produtos cartesianos, relação binária, etc. Por isso mesmo ela é utilizada, por todos, exceto os autores de livros didáticos brasileiros.
Manipulação de mais
A manipulação é, dos três, o componente mais difundida nos livros-texto adotados em nossas escolas. Conseqüentemente, abundam nas salas de aula, nas listas de exercícios e nos exames as operações com elaboradas frações numéricas ou algébricas, os cálculos de radicais, as equações com uma ou mais incógnitas, as identidades trigonométricas e vários outros tipos de questões que, embora necessárias para o adestramento dos alunos, não são motivadas, não provêm de problemas reais, não estão relacionadas com a vida atual, nem com as demais ciências e nem mesmo com outras áreas da Matemática.
A presença da manipulação é tão marcante em nosso ensino que, para o público em geral (e até mesmo para muitos professores e alunos), é como se a Matemática se resumisse a ela. Isso tem bastante a ver com o fato de que o manuseio eficiente de expressões numéricas e símbolos algébricos impõe a formação de hábitos mentais de atenção, ordem e exatidão, porém não exige criatividade, imaginação ou capacidade de raciocinar abstratamente.
Deve ficar bem claro que os exercícios de manipulação são imprescindíveis, mas precisam ser comedidos, simples, elegantes e, sempre que possível, úteis para emprego posterior.
O método peremptório
Intimamente ligada ao costume de privilegiar a manipulação formal no ensino da Matemática está a apresentação da Geometria segundo o que chamaremos de método peremptório. Este método consiste em declarar verdadeiras certas afirmações, sem justificá-las. Um dos maiores méritos educativos da Matemática é o de ensinar aos jovens que toda conclusão se baseia em hipóteses, as quais precisam ser aceitas, admitidas para que a afirmação final seja válida. O processo de passar, mediante argumentos logicamente convincentes, das hipóteses para a conclusão chama-se demonstração e seu uso sistemático na apresentação de uma teoria constitui o método dedutivo. Esse é o método matemático por excelência e a Geometria Elementar tem sido, desde a remota antigüidade, o lugar onde melhor se pode começar a praticá-lo. Lamentavelmente a grande maioria dos estudantes brasileiros sai da escola, depois de onze anos de estudo, sem jamais ter visto uma demonstração. O método peremptório de ensinar Geometria enfatiza as relações métricas, ignora as construções com régua e compasso e reduz todos os problemas a manipulações numéricas.
O que se deve demonstrar
Evidentemente, as demonstrações pertencem ao componente Conceituação. Elas devem ser apresentadas por serem parte essencial da natureza da Matemática e por seu valor educativo. No nível escolar, demonstrar é uma forma de convencer com base na razão, em vez da autoridade. Por esse motivo, não se deve demonstrar o que é intuitivamente evidente, o que todos aceitam sem hesitação. (Exemplo: que uma reta tem no máximo dois pontos em comum com uma circunferência dada.) Se demonstrar é uma forma de convencer por meio da razão, para que perder tempo provando algo de que todos já estão convencidos? Também não se devem provar resultados que, embora não sejam de forma alguma óbvios, necessitam, para serem demonstrados, de argumentos e técnicas difíceis, fora do alcance dos alunos, como o Teorema Fundamental da Álgebra, segundo o qual todo polinômio de grau n possui n raízes complexas. Por outro lado, determinados fatos matemáticos importantes não são intuitivamente evidentes mas possuem demonstrações fáceis e elegantes. Sem dúvida, o exemplo mais conhecido é o Teorema de Pitágoras, do qual devem ser dadas pelo menos duas das inúmeras demonstrações conhecidas.
Aplicações adequadas
As aplicações constituem, para muitos alunos de nossas escolas, a parte mais atraente (ou menos cansativa) da Matemática que estudam. Se forem formuladas adequadamente, em termos realísticos, ligados a questões e fatos da vida atual, elas podem justificar o estudo, por vezes árido, de conceitos e manipulações, despertando o interesse da classe. Encontrar aplicações significativas para a matéria que está expondo é um desafio e deveria ser uma preocupação constante do professor. Elas devem fazer parte das aulas, ocorrer em muitos exercícios e ser objeto de trabalhos em grupo.
Cada novo capítulo do curso deveria começar com um problema cuja solução requeresse o uso da matéria que vai começar a ser ensinada. É muito importante que o enunciado do problema não contenha palavras que digam respeito ao assunto que vai ser estudado naquele capítulo. De resto, as aplicações mais interessantes, durante todo o curso, são os exemplos e exercícios cujo objeto principal não é o assunto que está sendo tratado. Por exemplo: problemas sobre logaritmos em que a palavra logaritmo não apareça no enunciado ou exercícios que se resolvam com trigonometria mas que não falem em seno, cosseno, etc. Para resolver problemas dessa natureza é preciso estar bem familiarizado com a conceituação dos objetos matemáticos (além, naturalmente, de saber fazer as contas pertinentes). Por isso é que dissemos no início que a conceituação é fundamental nas aplicações.
A falta de aplicações para os temas estudados em classe é o defeito mais gritante do ensino da Matemática em todas as séries escolares. Ele não poderá ser sanado sem que a conceituação seja bem reforçada. Para resolver um simples probleminha, o aluno da escola primária hesita se deve multiplicar, somar ou dividir os dois números que são dados. Para decidir, ele precisa saber conceituar adequadamente essas operações. Analogamente, o aluno do ensino médio, diante de um certo problema proposto, não sabe se deverá modelar a situação com uma função afim, quadrática ou exponencial. (Problemas da vida não aparecem acompanhados de fórmulas!) É preciso que ele conheça as propriedades dessas funções a fim de tomar sua decisão. E assim por diante.
O professor dedicado deve procurar organizar seu curso de modo a obter o equilíbrio entre os três componentes fundamentais. Assim procedendo, terá dado um largo passo na direção do êxito na sua missão de educar.
Para saber +
Sociedade Brasileira de Matemática
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